Confira a entrevista da Dra. Imara Daloni:
No dia 14 de junho, comemorou-se o Dia Internacional da Doação de Sangue, nada mais oportuno do que a menção à recente decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou inconstitucional normas da Portaria 158/2016 do Ministério da Saúde e a Resolução 34/2014 da ANVISA, que proibiam homens homossexuais e seus parceiros(as) de doarem sangue pelo período de 12 meses após a última relação sexual.
A questão chegou ao Supremo Tribunal Federal por meio da ADI5543/DF, ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro, na qual os atos normativos foram contestados ao fundamento de seu caráter discriminatório, ofensa à dignidade da pessoa humana, ao direito de igualdade e ao princípio da proporcionalidade.
Com suporte em vários resultados de pesquisas relacionados à temática “doação de sangue” e o vírus HIV, comportamento sexual, e, ainda, a publicações dando conta das perdas nos estoques de sangue dos hemocentros em virtude das referidas restrições impostas, argumentou-se se tratar de grave equívoco, carregado de preconceito, a imposição de restrição de doação de sangue aos “homens que fazem sexo com homens” – HSH.
Ponderou-se que tal restrição data dos anos 80, época da epidemia da AIDS, contexto em que pouco ou nada se sabia sobre a propagação da AIDS, atribuída aos homossexuais. Argumento superado, não mais justificável em razão do avanço da medicina e conhecimento sobre as formas de contaminação e procedimentos técnicos adotados para o controle de qualidade do sangue utilizado, tudo a demonstrar o caráter preconceituoso e discriminatório da proibição dissociada da realidade atual.
Mas, e, sobretudo, teve peso a argumentação em torno da eleição dos homens homossexuais como “grupo de risco”. A rigor, é a conduta de risco que deve e deveria e deve ser sopesada, independentemente da orientação sexual ou gênero dos potenciais doadores de sangue. E, de acordo com dados atuais, todos os indivíduos que têm vida sexual ativa sem a devida proteção, e, repita-se, independentemente de sua orientação sexual ou gênero, encontram-se sujeitos aos riscos da AIDS. Portanto, não se sustenta a proibição com base em supostos “grupos de riscos”.
Em 2017, foram realizadas duas sessões de julgamento, suspensa a última, em 25/10/2017, pelo pedido de vista do Min. Gilmar Mendes. A retomada da pauta do julgamento, em 1º de maio de 2020, deu-se na ambiência e por força da ambiência da pandemia causada pelo COVID-19, justo porque as doações de sangue restaram ainda mais reduzidas nos hemocentros ante o isolamento social imposto às pessoas.
O julgamento pela declaração de inconstitucionalidade de artigos da Portaria 158/2016 do Ministério da Saúde e da Resolução 34/2014 da ANVISA foi por maioria, com placar de 7 a 4.
Prevaleceu o voto do Ministro relator, Edson Fachin, que considerou discriminatório o impedimento de doação de sangue com base, puramente, na orientação sexual do potencial doador.
No entendimento do Min. Fachin, não há justificativa para o estabelecimento de um “grupo de risco” assentado na orientação sexual, devendo ser aperfeiçoado no processo de seleção de candidatos a doadores de sangue fatores que apurem e identifiquem, sim, os comportamentos de riscos, ou se estará diante de restrição desmedida a pretexto de se aumentar a segurança de bancos de sangue no Brasil.
Segundo o Ministro Relator, as normas do Ministério da Saúde e da ANVISA estabelecem discriminação injustificável, tanto do ponto de vista do direito interno, quanto da proteção internacional de direitos humanos. A seu ver, ditas normativas, mesmo que não intencionalmente, terminam por ofender a dignidade da pessoa humana na sua dimensão de autonomia e reconhecimento, de vez que impedem as pessoas por ela abrangidas que sejam como são.
Afinal, registrou o Relator, as normas contestadas afrontam a existência, em si, própria, dos sujeitos por elas abarcados. Elas violam a forma de ser e existir dessas pessoas que, por existirem e serem como são, estão impedidas de serem por completo, de existirem em conjunto, em solidariedade, em alteridade, com responsabilidade e em relação com os demais. Nesse sentido, o Min. Relator afirmou que o ato de doar sangue é uma atitude altruísta, em que o doador pretende fazer o bem com a ação.
Para o Ministro Fachin, ao impedir tais doações, as normas sobreditas estariam ferindo diversos preceitos constitucionais, dentre eles o da dignidade da pessoa humana, o da personalidade e o da igualdade. E complementa: ao se ofender a dignidade da pessoa humana, há um problema constitucional seríssimo, pois todos os direitos da personalidade são feridos.
Nos termos do voto do Ministro Relator, além de violar a dignidade da pessoa humana, a forma de ser e de existir desse grupo de pessoas, tais normas as tratam de forma, injustificadamente, desigual, afrontando o direito fundamental à igualdade, não sendo mais possível relacionar doenças como a AIDS a um grupo de risco, mas, sim, a uma conduta de risco.
Votaram com o Ministro Relator os Ministros Luiz Fux, Rosa Weber, Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia.
Em seu voto, o Ministro Barroso assinalou que as normas contestadas tratam a questão da doação de sangue de modo discriminatório, não havendo justificativa para restrição de um direito fundamental dos homossexuais, ainda levando em conta que o Estado tem o dever de proteção da saúde pública. O modo como vocalizam a restrição é extremamente discriminatório e estigmatizante para uma coletividade já tradicionalmente vítima de preconceitos e abusos. Os atos normativos contestados criam, claramente, uma situação de desequiparação em relação aos homossexuais masculinos.
Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes considerou que a discussão se faz atual no contexto de excepcionalíssimo, decorrente da crise sanitária do COVID-19, e ponderou: “A anulação de impedimentos inconstitucionais tem o potencial de salvar vidas, sobretudo numa época em que as doações de sangue caíram e os hospitais enfrentam escassez crítica, à medida que as pessoas ficam em casa e as pulsações são canceladas por causa da pandemia de coronavírus.”
A Ministra Rosa Weber ratificou o tratamento discriminatório das normas contestadas ante a restrição a um “grupo de risco” em vez de “comportamento de risco”, e, principalmente, pelo fato dessas normas desconsiderarem fatores de extrema importância como o uso de preservativos, do número de parceiros fixos ou não, o que desatende, para a Ministra, o princípio da proporcionalidade.
O Ministro Luiz Fux, também, destacou a face discriminatória das normas que partem do pressuposto de que todo gay é potencialmente infectado pelo HIV, e o distanciamento da realidade sexual e dos dados de infecção por HIV nos dias atuais, asseverando “…a priori, o melhor critério não é o grupo de risco, mas a conduta de risco. A premissa é de que a maioria dos homossexuais seria portadora de HIV, quando as pesquisas mostram hoje que os homossexuais têm muito mais cuidado hoje do que os heteros.”.
A decisão do Supremo Tribunal Federal é de muitíssima importância seja por imprimir continuidade ao paradigma que vem sendo construído em julgamentos anteriores da Corte, envolvendo relações homoafetivas e o reconhecimento dos homossexuais como sujeitos de direito; seja por escoimar preconceitos e discriminações do ordenamento jurídico; seja, ainda, por garantir melhora significativa no reconhecimento do direito à igualdade dos homens homossexuais, e, por tabela, a todas as pessoas LGBTQI, frente às normas legais.
A decisão fornece, inclusive, suporte para que os homens homossexuais tenham liberdade de, em igualdade de condições com os demais sujeitos de direito, serem altruístas.
Mas não é só. A decisão da Corte Suprema, certamente, servirá de parâmetro para outros julgamentos de homens homossexuais e de pessoas LGBTQI cujos direitos sejam violados, sobremaneira, em se considerando a sua repercussão nos julgamentos dos Tribunais estaduais e federais. Assumindo igual relevância para a sociedade como um todo, de modo a contribuir para que nela seja despertado o sentimento de respeito pela diversidade.