O estigma da pessoa que não identifica com paridade a identidade de gênero e o sexo ao nascimento vem sendo reduzido a partir despatologização das identidades trans resultantes da adoção de políticas públicas específicas, com o progresso na medicina e com avanços em pesquisas científicas.

O classificação da incongruência de gênero como uma variante da sexualidade humana resulta em reconhecimento de direitos dessa parcela da população, inclusive de adequar seu corpo à sua identidade de gênero por meio de hormonioterapia e ou cirurgias.

No direito, a relevância está na garantia de preservação da saúde psíquica e que seja proporcionado qualidade de vida à pessoa que nasceu com incongruência sexual.

Sumário

OMS – CID 11 

A Classificação Estatística Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID) de 1990 listava o então transtorno de identidade sexual ou de gênero como doença ou distúrbio mental.

Com o progresso na medicina e os avanços em pesquisas científicas, em junho de 2018, a Organização Mundial da Saúde publicou a 11ª edição da CID, reconhecendo a transexualidade como incongruência de gênero, em categoria relativa à saúde sexual.

A presença da transexualidade na CID tem por finalidade ofertar maior atenção e cuidado à comunidade trans, notadamente quando considerado a saúde em sentido amplo, além de concorrer com a redução de estigmas e preconceitos.

Conceito de Saúde

Comumente, a saúde é entendida apenas como a ausência de doença. No entanto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a legislação brasileira entende que a saúde, na verdade, corresponde a conjunto de fatores que promovem a qualidade de vida e o bem-estar do indivíduo.

Constituição Federal de 1988

Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.  

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Lei nº 8.080/1990 (Lei do SUS)

Art. 3º. Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo a saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais.

Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social.

Portanto, o conceito de saúde deve estar adequado à preservar e proporcionar qualidade de vida e bem-estar do indivíduo, considerando todos os elementos e determinantes.

SUS – Política de Atendimento Integral à pessoa LGBTQI+

No Brasil, a primeira cirurgia de transição de gênero foi realizada em 1971, sem amparo legal e resultou na condenação do cirurgião que a fez. Com a regulamentação do assunto pelo CFM, no fim da década de 1990, procedimentos de estilo passaram a ser realizados e foram incorporados ao SUS em 2008.

Por meio das Portarias do Ministério da Saúde nº 2.836/2011 e nº 2.803/2013, o Sistema Único de Saúde (SUS) estabeleceu a Política Nacional de Saúde Integral à comunidade LGBTQI+, com o fim de reduzir as desigualdades e ofertar rede de serviços específicos a essa parte da população.

Além de promover cuidados à saúde, garantir direitos sociais, sexuais e reprodutivos, os atendidos têm direito a processo universal transexualizador, por meio de ações intersetoriais.

O procedimento terapêutico multidisciplinar inclui acompanhamento psicológico e psiquiátrico, hormonioterapia e cirurgias (vaginectomia e neofalopastia com implante de próteses penianas e testiculares; clitoroplastia e cirurgia de cordas vocais em pacientes em readequação para o fenótipo masculino; implante de prótese mamária; mastectomia masculinnizadora).

Resolução CFM nº 2.265/2019 – Incongruência de Gênero

A decisão adotada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) conceitua a incongruência de gênero ou transgênero como a não paridade entre a identidade de gênero e o sexo ao nascimento, incluídos neste grupo transexuais, travestis e outras expressões identitárias relacionadas à diversidade de gênero.

A resolução indica as expressões identitárias:

  • Transgênero: é a pessoa que se identifica com o gênero oposto ao qual ela nasceu;
  • Homens transexuais: aqueles nascidos com o sexo feminino que se identificam como homem;
  • Mulheres transexuais: aquelas nascidas com o sexo masculino que se identificam como mulher;
  • Travesti: pessoa que nasceu com um sexo, identifica-se e apresenta-se fenotipicamente no outro gênero, mas aceita sua genitália;
  • Afirmação de gênero: o procedimento terapêutico multidisciplinar para a pessoa que necessita adequar seu corpo à sua identidade de gênero por meio de hormonioterapia e ou cirurgias.

A resolução indica que a assistência médica destinada à promoção da atenção integral e especializada ao transgênero inclui o acolhimento, acompanhamento ambulatorial, procedimentos clínicos, a hormonioterapia e o cuidado cirúrgico e pós-cirúrgico.

Com a rede especializada e mais próxima dos pacientes, busca-se o estabelecimento de transição mais segura. Considerando, principalmente, que sem essa forma de acompanhamento, muitos indivíduos buscam a automedicação, por serviços clandestinos, injeção de silicone industrial e outros métodos que resultam em mais danos à própria saúde.

A equipe médica especializada deve ser composta por pediatra, quando o assistido for menor de 18 anos de idade, psiquiatra, endocrinologista, ginecologista, urologista e cirurgião plástico, além de outras que se revelem necessárias para atender à necessidade individualizada.

Os familiares e pessoas da convivência do assistido também poderão receber atenção da rede de cuidado, respeitando-se a vontade do paciente e as limitações impostas pelo Código de Ética Médica.

É vedada a intervenção hormonal em indivíduo antes de que complete 16 anos de idade e cirúrgica, antes de alcançar os 18.

A pessoa diagnosticada com transtorno mental que o contraindique ao processo de transição de gênero não poderá ser sujeito de procedimento hormonal nem cirúrgico.

Planos de Saúde

É comum que os planos de saúde se neguem a custear os procedimentos de transição sexual sob o fundamento de que a transexualidade seria transtorno pré-existente, autorizando-o a exigem prazo de carência para acompanhamento médico-hospitalar sobre a questão.

Também, as operadoras de saúde alegam que os procedimentos cirúrgicos seriam meramente estéticos, contrariando, desse modo, o art. 10 da Lei nº 9.656/1998, que os obriga a cobrirem apenas as doenças listadas na CID.

Art. 10.  É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei, exceto: 

I – tratamento clínico ou cirúrgico experimental

II – procedimentos clínicos ou cirúrgicos para fins estéticos, bem como órteses e próteses para o mesmo fim;

III – inseminação artificial;

IV – tratamento de rejuvenescimento ou de emagrecimento com finalidade estética;

V – fornecimento de medicamentos importados não nacionalizados;

VI – fornecimento de medicamentos para tratamento domiciliar, ressalvado o disposto nas alíneas ‘c’ do inciso I e ‘g’ do inciso II do art. 12;               

VII – fornecimento de próteses, órteses e seus acessórios não ligados ao ato cirúrgico;                    

IX – tratamentos ilícitos ou antiéticos, assim definidos sob o aspecto médico, ou não reconhecidos pelas autoridades competentes;

X – casos de cataclismos, guerras e comoções internas, quando declarados pela autoridade competente.

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) emitiu o Parecer Técnico nº 26/2021,  indicando que procedimentos como mastectomia, histerectomia, ooforectomia ou ooforoplastia e tiroplastia são de cobertura obrigatória, desde que haja solicitação médica em processo de redesignação sexual.

Quer dizer, a abordagem pela ANS não abrange todos os procedimentos de incongruência de gênero, resultando, assim, na crescente judicialização de demandas. 

A Constituição Federal de 1988 garante a qualquer cidadão o reconhecimento dos direitos próprios da pessoa (humana) e veda a prática de quaisquer formas de discriminação.

Outros direitos e garantias

Essas garantias repercutem em todo o ordenamento jurídico brasileiro – no direito civil, do consumidor, do trabalho, penal e outros – e, aqui destacamos, o direito de adotar o nome social e sua alteração sem autorização judicial, laudo médico nem comprovação de intervenção cirúrgica.

Conclusão

No cenário contemporâneo, adota-se a conclusão de que as características biológicas e fisiológicas não devem ser sobrepostas à identidade de gênero, que está intimamente relacionada à dignidade da pessoa humana e, na saúde, a seu sentido mais amplo.

Consequentemente, a relação contratual entre paciente e plano de saúde, baseada na proteção à vida e saúde, sobretudo, deve proporcionar o bem-estar do indivíduo, não doente, que se identifica com mais uma das variantes da sexualidade humana.

Portanto, o ordenamento jurídico assegura que o Sistema de Saúde, seja o público ou o privado, está obrigado a prestar acompanhamento especializado à pessoa trans.

Pedro Enrique Pereira Alves da Silva

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