A autorização concedida pela Anvisa ao pedido da Pfizer para o uso de sua vacina em crianças de 5 a 11 anos de idade abriu o debate sobre a vacinação compulsória dessa parcela da população. Deixando de lado a opinião política, o presente artigo expõe os argumentos daqueles que defendem a vacinação facultativa e obrigatória das crianças.

O atual cenário

Em 16 de dezembro de 2021, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), autarquia reguladora responsável  pelo  controle sanitário de produtos para a promoção da saúde da população, autorizou o uso da vacina da Pfizer contra  a Covid-19 em crianças de 5 a 11 anos no Brasil.

Ainda sem ter sido implantada no Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19 do Ministério da Saúde, as notícias veiculadas nos dias seguintes à aprovação foram de que o Poder Executivo Federal exigiria dos pais termo de responsabilidade e receita médica como condição para a imunização das crianças menores de 12 anos de idade.

A partir desses fatos, a sociedade passou a debater o caráter compulsório da vacinação contra a Covid-19 na população dessa faixa etária, o que, inevitavelmente, repercute no campo jurídico, objeto dessa abordagem.

Imunização de crianças: vacinação facultativa x vacinação obrigatória

Os que defendem a  facultatividade da vacinação de crianças e adolescentes, como ocorre com as pessoas adultas, argumentam que vivemos em um estado democrático de direito e que a intervenção do Poder Público estaria ferindo o direito à autodeterminação e à liberdade garantida a cada um dos indivíduos.

Contrapondo-se a esses argumentos, os que defendem a obrigatoriedade da vacinação da população menor de idade afirmam que é dever do Estado, em situações excepcionais, proteger a dignidade das pessoas e da comunidade, mesmo que contra a sua vontade; que a vacinação resulta na proteção coletiva, e que a escolha individual não pode afetar gravemente o direito de terceiros; além de sustentarem que as convicções filosóficas, religiosas, políticas e outras que decorrem da liberdade de consciência dos pais não poderiam colocar em risco a saúde dos filhos.

Dizer a qual das posições o direito ampara, então, não pode ser feito de forma objetiva, justamente porque a pluralidade de opiniões é fundamentada em direitos e garantias Constitucionais.

Para que se possa analisar o debate sob o viés jurídico é preciso conhecer os direitos de maior relevância incidentes na discussão.

Direito à vida e à saúde

Muitas vezes citados no mundo jurídico como os direitos de maior relevância para o ser humano, a defesa da vida e da saúde estão previstas nos arts. 5º, 6º  e 196 da Constituição Federal.

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Inclusive, dada à importância da vida e da saúde da população, deve o Estado assegurar, por meio de políticas públicas, que a promoção e a defesa da saúde ocorra em todos os graus de doenças e por meio de tratamentos confirmados por evidências científicas reconhecidas e regulamentadas.

Portanto, cabe ao Poder Público prestar as ações e serviços de saúde de forma integral e incondicional.

Direito à liberdade e à autodeterminação 

Um dos fundamentos que possibilita a existência do Estado Democrático de Direito, aquele que é criado pelo povo e para o povo, é de que o exercício das liberdades civis será juridicamente protegido, de modo a assegurar os direitos da pessoa humana.

A Constituição Federal traz a liberdade de consciência, direito de o indivíduo agir conforme suas convicções, abrangendo as liberdades nos campos religioso, filosófico e ideológico, e o direito de autodeterminação, faculdade de o indivíduo traçar o seu próprio programa de vida, como forma de garantir a inviolabilidade de sua própria liberdade individual.

Preâmbulo

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(…)

III – a dignidade da pessoa humana;

Art. 5º. (…)

VI é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

Quer dizer, por meio da garantia ao pleno exercício dos direitos individuais, a Constituição Federal assegura a cada cidadão a possibilidade de viver, de acordo com suas convicções, em harmonia e paz com os outros indivíduos, limitando a atuação do Estado.

Da proteção prioritária da criança e do adolescente

O ordenamento jurídico brasilieiro trata dos interesses da criança e do adolescente de forma prioritária, justamente por compreender que são pessoas em fases da vida em que ocorre a formação moral, social e psíquica, e, portanto, vulneráveis.

Logo, o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente indica que deve haver vigilância, proteção e cuidado dos mais jovens para que se desenvolvam de forma sadia.

Constituição Federal

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 1º. O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas e obedecendo aos seguintes preceitos:

Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.

Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990)

Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando- se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem.

Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária

Quer dizer, a proteção especial dada à pessoa em desenvolvimento visa assegurar o seu crescimento com condições dignas. Mas, para que isso se concretize, é necessário que, antes, a vida e a saúde da criança e do adolescente sejam asseguradas.

Por isso, zelar para que os direitos sociais dos mais jovens não sejam violados não compete exclusivamente aos pais e responsáveis, cabe também ao Estado e a toda sociedade trabalhar para que a assistência se dê em conformidade com o melhor interesse da criança e do adolescente.

A autonomia do paciente no Direito Médico e da Saúde

Especificamente no Direito Médico, da Saúde e Bioético, a autonomia do paciente é a garantia de que as informações sobre o seu quadro clínico lhes serão prestadas de forma clara, possibilitando que ele, sabendo de riscos e benefícios, de forma livre, voluntária e consciente manifeste o seu consentimento ou recuse a realização de procedimentos e atos médicos do tratamento proposto.

Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos

Conforme a presente Declaração, nas decisões tomadas ou práticas desenvolvidas por aqueles a quem ela é dirigida, devem ser respeitados os princípios a seguir. 

(…)

Artigo 5 – Autonomia e Responsabilidade Individual 

Deve ser respeitada a autonomia dos indivíduos para tomar decisões, quando possam ser responsáveis por essas decisões e respeitem a autonomia dos demais. Devem ser tomadas medidas especiais para proteger direitos e interesses dos indivíduos não capazes de exercer autonomia. 

Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2.217/2018)

Capítulo I – Princípios Fundamentais 

XXI – No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas.

Art. 24. (É vedado ao médico) Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.

Portanto, também no Direito Médico a autodeterminação do indivíduo é assegurada, vinculando a norma às garantias Constitucionais.

E na hipótese de paciente ser menor de idade, a autonomia será exercida por seus pais ou responsável, por representação, que irá anuir ou rejeitar procedimentos diagnósticos e terapêuticos indicados no tratamento da pessoa incapaz, garantindo o seu seu bem-estar. 

Nesse caso, em regra, o médico assistente deve acatar a decisão tomada pelo representante. Porém, é possível que o profissional atue de forma diversa da autorização que lhe foi concedida se constatar  que a decisão impõe risco de morte ao paciente menor de idade.

Código de Ética Médica

Art. 31. (É vedado ao médico) Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.

Ressalto que antes de agir, deve o médico demonstrar aos pais ou responsável o risco ao qual seu dependente está exposto, com a finalidade de o conscientizar sobre a proteção do melhor interesse da criança e do adolescente.

Se ainda assim não obtiver o consentimento do responsável para a prática que resguarda o direito à vida e à saúde do incapaz, o médico poderá agir de acordo com o procedimento disponível e cientificamente reconhecido no interesse da saúde do paciente.

A Proteção à coletividade e outras medidas profiláticas

Antecedem à discussão em evidência a Lei que organiza o Programa Nacional de Imunizações (nº 6.259/1975) e a que institui Medidas de Enfrentamento da Pandemia da Covid-19.

Os textos normativos autorizam, inclusive, que a vacinação se dê em caráter obrigatório e que medidas restritivas sejam impostas a indivíduos que não comprovarem o atestado de vacinação. Confira:

Programa Nacional de Imunizações (Lei nº 6.259/1975)

Art 3º. Cabe ao Ministério da Saúde a elaboração do Programa Nacional de Imunizações, que definirá as vacinações, inclusive as de caráter obrigatório.

Art 5º. O cumprimento da obrigatoriedade das vacinações será comprovado através de Atestado de Vacinação.

(…)

§ 3º Anualmente, para o pagamento do salário-família, será exigida do segurado a apresentação dos Atestados de Vacinação dos seus beneficiários, que comprovarem o recebimento das vacinações obrigatórias, na forma que vier a ser estabelecida em regulamento.

Art 6º. Os governos estaduais, com audiência prévia do Ministério da Saúde, poderão propor medidas legislativas complementares visando ao cumprimento das vacinações, obrigatórias por parte da população, no âmbito dos seus territórios.

Medidas de Enfrentamento da Pandemia da Covid-19 (Lei nº 13.979/2020)

Art. 1º.  Esta Lei dispõe sobre as medidas que poderão ser adotadas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.

Art. 3º.  Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas:

(…)

III – determinação de realização compulsória de:

d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou

(…)

§ 2º  Ficam assegurados às pessoas afetadas pelas medidas previstas neste artigo:

(…)

III – o pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas, conforme preconiza o Artigo 3 do Regulamento Sanitário Internacional, constante do Anexo ao Decreto nº 10.212, de 30 de janeiro de 2020.

Quer dizer, é possibilitado ao Poder Público exigir a obrigatoriedade da imunização, porém, não forçada ou por meio de medidas invasivas, aflitivas ou coativas, como ressaltou o Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6587/DF, de 17 de dezembro de 2020.

Com isso, a legislação visa assegurar que, por meio da imunização em massa, sejam reduzidas a morbimortalidade causada por doenças infecciosas transmissíveis e a própria imunidade de rebanho, reduzindo os danos à coletividade, sem que ofenda o direito à liberdade e a inviolabilidade e integridade do corpo humano individual.

Passado pelos direitos de maior relevância para a questão, podemos dizer, então, que a vacinação compulsória de crianças entre 5 e 11 anos de idade é legal?

Os direitos ora tratados, então, revelam que, aparentemente, existe conflito entre atos normativos, pois as garantias individuais possibilitariam também à criança e ao adolescente a recusa à imunização obrigatória, e, por outro lado, o dever do Estado e de toda a sociedade de zelar pelo direito à vida e à saúde dos mais jovens.

Dizer que o conflito é tão somente aparente revela que o mesmo bem jurídico pode ser protegido por mais de uma garantia, sendo os aqui abordados plenamente aplicáveis à situação debatida.

Cabe, desse modo, ao judiciário aplicar as garantias de forma pacífica e conciliatória, realizando exame de ponderação entre eles, sobretudo porque nenhum direito é absoluto, sendo a limitação de sua aplicabilidade a aplicação de outro direito.

No caso, ainda que seja atributo dos pais e responsáveis o exercício dos direitos do seu tutelado, o cuidado do interesse da criança e do adolescente também é dever do Estado e da sociedade. Assim bem pontuam Luís Paulo dos Santos Pontes e Joyce Bezerra Menezes em A liberdade religiosa da criança e do adolescente e a tensão com a função educativa do poder familiar:

Ainda que o poder familiar seja subordinado à função de garantir o bom desenvolvimento, o cuidado, a segurança e o bem estar dos filhos, é possível que uma utilização disfuncional venha a desconsiderar a vontade das crianças/adolescentes e, até mesmo, malferir seus direitos fundamentais.

E é por meio de intervenção legal no exercício do poder familiar que o Estado e toda a sociedade podem assegurar à criança e ao adolescente que o direito à vida e à saúde serão assegurados.

Aliás, o não exercício da imunização da criança fundamentada em liberdade de consciência dos pais, como a própria definição revela, diz respeito à liberdade de escolha dos pais, e não da criança, que não pode a proteção de sua vida e saúde ceifadas por mera escolha de seus responsáveis.

Nesse sentido foi o entendimento do  Supremo Tribunal Federal ao julgar o Recurso Extraordinário RE nº. 1267879, em 17/12/2020, caso em que pais veganos se recusaram a submeter filho menor de idade às vacinações definidas como obrigatórias pelo Ministério da Saúde, em razão de convicções filosóficas.

Confira trecho da decisão:

É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações, ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar.

Com isso, o caráter compulsório de vacinas que tenha registro em órgão de vigilância sanitária e em relação a qual existe consenso médico-científico, encontra amparo no ordenamento jurídico pátrio.

Conclusão

Concluo que a vacinação compulsória de crianças e adolescentes é constitucional e legal, quando os imunizantes já tiverem alcançado consenso médico-científico e o registro na Anvisa, seguido de regulamentação da por lei ou por ato do Poder Executivo de ente federado.

Complemento que a garantia constitucional à liberdade não estaria sendo ferida nem que configuraria limitação à autodeterminação.

Isso porque, em adultos não se estaria adotando medidas invasivas, aflitivas ou coativas. E em indivíduos em desenvolvimento, que não gozam de capacidade nem discernimento quanto à importância de proteger sua vida e saúde, o exercício desse direito é imposto não apenas aos pais e responsáveis, mas também ao Estado e a toda sociedade.

Consequentemente, eventual barreira ou requisito imposto por ato normativo do executivo ou do legislativo, como abordado no início desta exposição, tende a ser declarado inconstitucional.

Pedro Enrique Pereira Alves da Silva

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